31 de janeiro de 2017

Pastoreio

Manhã de Domingo. Depois de muita chuva, o céu amanheceu azul. Céu azul, depois de muita chuva, é uma felicidade. Vou levar meu rebanho a passear. Convido meu amigo Alberto Caeiro a me acompanhar. Também ele é um guardador de rebanhos. “Minha alma é um pastor,“ ele diz. “Conhece o vento e o sol e anda pela mão das estações a seguir e a olhar. Toda a paz da natureza sem gente vem sentar-se ao meu lado…“

Se alguém o chamar de mentiroso, dizendo que nunca o viu guardar rebanhos, ele logo explica que, de fato, ele não pastoreia ovelhinhas brancas de lã e berros. Suas ovelhas são as suas idéias, que ele leva a passear pelos campos.

Os campos fazem bem tanto às ovelhas quanto às idéias, especialmente nesse dia lindo por fora, mas meio cinzento por dentro – que põe em mim uma sombra de tristeza. Mas meu companheiro logo me consola, dizendo que aquela “tristeza é sossego, é natural e é justa, e é o que deve estar na alma quando já pensa que existe e as mãos colhem flores sem ela dar por isso.“ Vou, assim, contente com a minha tristeza, levando minhas ovelhas, que estão visivelmente agitadas. Acho que sentiram cheiro de lobo no ar.

Olho para o campo. Sinto que o outono está chegando. Suas marcas são inconfundíveis. Primeiro o ar, que fica mais fresco, quase frio. Uma brisa vai passando, brincando de fazer cintilar as folhas das árvores sob a luz do sol. Nas folhas dos eucaliptos ela toma um banho de perfume, e vem fazer cócegas no nariz da gente e nos pelos do corpo, que se arrepiam de prazer. Friozinho gostoso. Dali salta para o capim gordura e vai soprando as suas hastes floridas. As florescências de outono, eu as acho mais bonitas que as florescências de primavera. As florescências de primavera são “por causa de“. As florescências de outono são “a despeito de“.

Acho as flores do capim gordura mil vezes mais bonitas que as rosas. Rosas são entidades domesticadas. Elas são como o leite das vacas de estábulo, aquelas vacas enormes, protegidas de sol e chuva, enormes olhos parados, obedientes, jamais pensam um pensamento proibido, só sabem comer, ruminar, parir, dar leite que se vende em saquinhos de plástico. Assim também são as rosas, crescidas em estufas, nada sabem sobre a natureza, tal como ela é, ora bruta, ora brincante – protegidas de sol e chuva, todas iguais, bonitas e vazias. As flores do capim, ao contrário, são selvagens. Inúteis todos os esforços para domesticá-las. Basta tocá-las com mais força para que suas flores se desfaçam. Elas acham que é preferível morrer a serem colocadas em jarra. As flores do capim só são belas em liberdade, tocadas pela brisa, pelo sol, pelo olhar.

Eu não tenho a felicidade do meu amigo Alberto Caeiro, que dizia que só vê direito quem não pensa. Disse mesmo que pensamento é doença dos olhos. Entendo e concordo. Bom seria olhar para os campos e os meus pensamentos serem só os campos. Nos campos há árvores, brisa, céu azul, nuvens, riachos, insetos, pássaros. Você, por acaso, já viu uma ansiedade andando pelos campos? Ou uma raiva navegando ao lado das nuvens? Ou um medo piando como os pássaros? Não. Essas coisas não existem nos campos. Elas só existem na cabeça. Assim, se os meus pensamentos fossem iguais ao que vejo, ouço, cheiro e sinto ao andar pelos campos, o meu mundo interior seria igual ao mundo exterior, e a minha mente teria a simplicidade e a calma da natureza. Eu teria a mesma felicidade que têm os deuses porque, como o meu companheiro me segredou num momento de excitação teológica, nos deuses o interior é igual ao exterior. Eles não possuem inconsciente. Por isso são felizes.

Esse felicidade eu não tenho. Vejo e penso. Lembrei-me do conselho de Jesus, de que deveríamos olhar para flores do campo.

Olhei e elas começaram a falar. O que disseram? Disseram o que dizem sempre mesmo quando eu não estou lá. “Os seus olhos estão contemplando o que tem acontecido por milhares de anos. Por milhares de anos assim temos florescido. Por outros milhares de anos assim continuaremos a florescer. Muitos outros rebanhos perturbados como o seu já passaram por aqui. Mas deles não temos mais memória. Passaram e nunca mais voltaram. Desapareceram no rio do tempo. O rio do tempo faz todas as coisas desaparecerem. Por isso nada é importante. Nossas ansiedades também estão destinadas ao rio. Também elas desaparecerão em suas águas. O seu sofrimento se deve a isso, que você se sente importante demais, que você não presta atenção na voz do rio. Quando nos sentimos importantes nós ficamos grandes demais. E junto com o tamanho da nossa importância cresce também o tamanho da nossa dor. O rio nos torna pequenos e humildes. Quando isso acontece a nossa dor fica menor. Se você ficar pequeno e humilde como nós, você perceberá que somos parte de uma grande sinfonia. Cada capim, cada regato, cada nuvem, cada coruja, cada pessoa é parte de uma harmonia universal. Quem disse isso foi Jesus. Ele disse que para nos livrarmos da ansiedade é preciso ficar humildes como os pássaros e as flores.

Aí o meu amigo Alberto Caeiro tomou a palavra e disse: “Quando vier a primavera, se eu já estiver morto, as flores florirão da mesma maneira e as árvores não serão menos verdes que na primavera passada. Sinto uma alegria enorme ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.“

Eu fiquei assustado com essas palavras mas ele me tranquilizou. “Se você se julgar muito importante, então tudo dependerá de você. Mas se você se sentir humilde, então tudo dependerá de algo maior que você. Você estará, finalmente, nos braços de um pai ou no colo de uma mãe. E quem está nos braços do pai ou no colo da mãe pode dormir em paz…“

Aí as flores do capim retomaram a palavra.

“O inverno vem. Com ele o frio e a seca. Parecerá que eu morri. Mas minhas sementes já foram espalhadas. A primavera vai voltar, e com ela a alegria das crianças e do brinquedo". Está lá nas Sagradas Escrituras: “Lança o teu pão sobre as águas porque depois de muitos dias o encontrarás.“ Coisa de doido. Pão lançado sobre as águas some, não volta jamais. Mas é assim que acontece no rio do tempo. Ele é circular. O que foi perdido retorna. O que vem vindo é o que já foi.

Olhei em volta e vi minhas ovelhas mansamente deitadas sob uma árvore…

Rubem Alves 
Em: A grande arte de ser feliz